Na Mídia - No Bonsucesso, a escolha entre vida e morte
O Globo / Rio
15/03/2018
Profissional
teve que retirar oxigênio de idoso com câncer de pulmão para tentar salvar
vítima de infarte
Inaugurada há duas semanas, a nova emergência do Hospital Federal de Bonsucesso (HFB) está com as instalações tinindo de tão novas, mas as agruras de quem procura atendimento na unidade são as mesmas de sempre. Ontem, dois pacientes dividiam o espaço onde deveria haver apenas um leito. Quando o terceiro doente chegou, com parada cardíaca, o clínico geral foi obrigado a fazer “uma escolha de Sofia”: decidir quem ficaria com o oxigênio. Havia apenas dois tubos no local. Funcionários que testemunharam o desespero do médico para tentar salvar vidas sem os recursos necessários contam que ele fez, espremido entre duas macas, massagem cardíaca no homem infartado. Depois, gritou: “vou intubar! oxigênio!”. Sem outra opção, retirou de um idoso que estava deitado ao lado o gás que o ajudava a respirar. Com câncer de pulmão, o homem ficou em sofrimento por meia-hora. O esforço todo foi em vão: o paciente com parada cardíaca acabou morrendo.
Além dos dois pacientes que já estavam na sala, outros dois
chegaram quando o corpo do morto mal havia sido retirado. O clínico geral ficou
com a responsabilidade de cuidar delas e dos demais 65 pacientes que se
dividiam entre duas enfermarias e os corredores, já repletos de macas. No rosto
do profissional, que dividia o turno com apenas um cirurgião e um pediatra, o
desespero era evidente. A situação foi constatada durante vistoria do Conselho Regional de Medicina (Cremerj). A
entidade acompanha o trabalho na unidade que, desde a inauguração da nova
emergência, já perdeu seis médicos, que pediram demissão.
— Há seis meses, tínhamos cerca de 40 clínicos na
emergência (que funcionava em contêineres). Hoje, são 12. Nas últimas duas
semanas, desde que a nova emergência abriu, seis médicos pediram demissão. Na
terça, um clínico concursado, após ter dado plantão noturno sozinho na
segunda-feira, pediu exoneração. São 12 horas tendo que escolher quem vai usar
o respirador, quem será monitorado, quem tem mais chance de viver. As pessoas
saem dos plantões destruídas — desabafa um dos médicos que ainda resiste no
atendimento e que ontem não estava na unidade.
Outro profissional contou que teme chegar o dia em que terá
que reanimar um paciente no chão:
— Há momentos em que tenho cinco pacientes na sala vermelha
improvisada, um espaço preparado para atender a apenas uma pessoa. Se chegar
mais um infartado, terei que atender no chão — reclamou o médico, acrescentando
que vive escolhas difíceis a cada plantão. — Preciso fazer uma engenharia,
tirando pacientes que não estão com suporte de oxigênio da enfermaria e
colocando-os no corredor para poder internar quem deveria estar num CTI. Fico
procurando saídas de oxigênio e sou obrigado a escolher entre pacientes mais
novos e mais velhos e entre pacientes que estão sob cuidados paliativos e os
que ainda têm chance de viver. Desde que a nova emergência foi aberta, todos os
pacientes intubados morreram porque não têm o suporte de terapia intensiva 24
horas que deveriam receber.
O presidente do Conselho
Regional de Medicina (Cremerj), Nelson Nahon, que esteve ontem no
hospital para uma assembleia de emergência convocada pelos médicos, se deparou
com o cenário de caos.
— No corredor da emergência tinha oito pacientes em macas e
59 doentes internados. A maioria em estado grave. Encontramos de plantão um
clínico, um pediatra e um cirurgião, que não sabiam se haveria médico para
rendê-los à noite. É necessário que a direção se pronuncie e tome medidas enérgicas.
O Ministério da Saúde precisa promover a imediata contratação de pessoal para a
emergência do Hospital de Bonsucesso — disse.
Desde que a nova emergência abriu, seis médicos pediram
demissão. Setor já está superlotado
DÉFICIT DE MIL PROFISSIONAIS
O Departamento de Gestão Hospitalar (DGH) do Ministério da
Saúde no Rio informou que foi autorizada a convocação de 35 profissionais para
a nova emergência. Desde a gestão passada — a direção do HFB foi trocada no
último dia 6 —, candidatos aprovados no último concurso, realizado há quatro
anos, têm sido procurados, mas nenhum até agora aceitou assumir as vagas. O DGH
afirmou ainda que, durante o dia de ontem, uma equipe formada por um clínico
geral, dois cirurgiões, dois ortopedistas e dois pediatras, estava trabalhando.
Os problemas na nova emergência vieram à tona logo no
segundo dia de funcionamento. O espaço de 3.500 metros quadrados e 62 leitos já
tinha pacientes em macas e cadeiras no corredor. Levantamento realizado pela
direção do hospital, com a consultoria do Sírio Libanês, mostrou que seria
necessário contratar mais de mil profissionais, entre médicos, enfermeiros e
pessoal administrativo, para que o novo setor funcionasse em sua capacidade
máxima, atendendo a até cem pacientes ao dia. O CTI, com dez leitos, assim como
a sala vermelha, com quatro leitos, permanecem fechados por falta de pessoal.