Clipping - O mundo pelo tato
O Globo / Sociedade
30/04/2018
Escolas para pessoas com surdocegueira ajudam a vencer obstáculos na educação
Foram a americana Helen Keller e sua professora Anne
Sullivan as primeiras responsáveis por diminuir o mistério em torno da
surdocegueira, há pouco mais de um século. Helen, que ficou surda e cega com 1
ano de idade, só aprendeu uma forma de comunicação aos 7, no ano de 1887,
quando conheceu sua instrutora. Anne passou mais de um mês tentando fazer a
menina associar objetos a palavras, colocando, por exemplo, uma caneca em uma
de suas mãos e soletrando a palavra correspondente na palma da outra mão. A
pequena ficou tão frustrada por não entender o significado daquilo que chegou,
em um dado momento, a quebrar a tal caneca. A primeira vez que Helen
compreendeu a conexão foi com a ideia de “água”: Anne deixou escorrer o líquido
por uma das mãos da menina, enquanto fazia movimentos sobre a outra mão. Helen
foi a primeira pessoa surdocega a conquistar um bacharelado, em 1904, e sua
história virou filme, “O milagre de Anne Sullivan", de 1962. Hoje, no
Brasil, outros tantos professores, crianças e jovens repetem o feito de Anne e
Helen.
Não existem dados oficiais de quantos surdocegos existem no
país, mas, segundo uma compilação feita em 2011 por uma das fundadoras da
Associação Educacional para Múltipla Deficiência (Ahimsa), Shirley Maia, 244
pessoas com surdocegueira vivem apenas na cidade de São Paulo. E, até 2014, ela
contabilizou 785 alunos que passaram pela Ahimsa, que existe desde 1991.
— O maior obstáculo é acessar essas pessoas e transformar
essa comunicação em uma linguagem simbólica — diz ela. — A principal questão é
como se vai conhecer o mundo? Tem que ser pela via do tato, e quem está ao
redor precisa ser paciente. Não imaginamos que é possível entender e se fazer
presente sem ver e sem ouvir. Quando percebemos essas possibilidades, é muito
bonito.
Existem vários tipos de comunicação para quem tem
surdocegueira, e os professores tendem a ensinar toda essa gama para que a
pessoa escolha o método com o qual mais se adapta. Quem nasceu surdo e ficou
cego apenas na fase adulta, por exemplo, conversa por meio de Libras tátil, que
é quando o interlocutor faz os sinais na palma da mão da pessoa que tem a
deficiência.
O método Tadoma, muito usado por Helen Keller, é um dos
mais complexos, porque exige que a pessoa com surdocegueira coloque a mão na
boca e no pescoço de quem está falando para compreender a mensagem só pela
vibração das cordas vocais. No Brasil, Shirley só conhece seis pessoas que
dominam bem o Tadoma. Em toda a América Latina, apenas aqui e no Uruguai há
surdocegos que utilizam a técnica.
Na escola Ahimsa, em São Paulo, são admitidos alunos dos 4
aos 30 anos. Para quem tem uma criança com surdocegueira na família, o primeiro
passo é procurar orientação de uma instituição como essa, tal qual a Associação
Brasileira dos Surdos e Cegos (Abrasc) ou o Grupo Brasil de Apoio ao Surdocego
e ao Múltiplo Deficiente.
O isolamento é o maior risco. Shirley conta que já
encontrou surdocegos que jamais saíram de casa:
— Uma moça de mais de 30 anos vivia nua e só tomava
mamadeira. Em outro caso, um rapaz de 14 anos era amarrado com o cachorro
quando a família saía. Ele chegava a comer ração. A gente encontra às vezes
casos bem graves, e o primeiro a se fazer é trabalhar com a família.
A pedagoga e guia-intérprete Dalva Watanabe destaca que a
educação de uma pessoa que nasceu com surdocegueira é diferente da de quem
adquiriu a deficiência mais tarde. Também depende de quanto tempo a pessoa está
surdocega.
— Assim que a pessoa adquire surdocegueira, o impacto é
grande. E ela pode demorar a aceitar essa nova identidade. Mas, em compensação,
ela já tem uma imagem mental do mundo. Para quem nasce com surdocegueira, é
difícil imaginar uma montanha, por exemplo — diz Dalva.
No caso de bebês surdocegos, ela aconselha os pais a
evitarem movimentos abruptos: antes de amamentar, por exemplo, levar a mão da
criança devagar ao seio da mãe, deixá-la segurar a manta e encontrar o mamilo
sem pressa.
— Isso ajuda a criar um vínculo emocional, que já é uma
forma de comunicação. De outro modo, sem ver e sem ouvir, a criança viverá
sempre algo inesperado e isso pode virar um trauma — diz.
Entre as principais causas para surdocegueira, estão a
rubéola durante a gestação, a meningite e a Síndrome de Usher, doença genética
que reduz progressivamente esses dois sentidos.