Clipping - A fila do desamparo na rede municipal
O Globo /
08/01/2017
Sistema de marcação de consultas e exames tem
134 mil pacientes. Há casos em que espera por atendimento passa de um ano
A falta de médicos,
equipamentos e vagas no sistema de saúde pública criou uma fila de 134 mil
pacientes que esperam por consultas, exames e internação para cirurgia nos
hospitais municipais do Rio, revelam
VERA ARAÚJO e RAYANDERSON
GUERRA. Há casos em que o atendimento acontece só um ano após o diagnóstico. A
gentileza de acompanhar um visitante no caminho de sua casa, numa favela do
subúrbio do Rio, até um ponto de ônibus passou a ser uma tarefa das mais
espinhosas para o aposentado Raimundo de Assis Alves, de 59 anos. Sem a visão
do olho direito e com a do esquerdo prejudicada, ele tenta desviar dos
obstáculos na rua, inclusive barricadas do tráfico, mas nem sempre se livra de
dar topadas. A maior barreira que ele enfrenta, no entanto, é conseguir marcar
uma consulta com um especialista na rede municipal de saúde, para saber
finalmente qual o seu problema. Desde maio, quando procurou uma clínica da
família e descobriu que teria de ser atendido por um oftalmologista, o
aposentado espera por uma vaga. Enquanto isso, sua visão piora progressivamente.
O problema é que, na
clínica, Raimundo foi, assim como qualquer outro doente, colocado numa fila
virtual, do Sistema de Regulação (Sisreg) do município, que automaticamente
procura vagas e marca consultas e exames em outras unidades da rede. Atualmente,
há 134 mil pessoas à espera de serem chamadas. No caso do aposentado, ele está
entre 28.035 pacientes aguardando um agendamento para um oftalmologista. Em
todas as especialidades médicas, esse número chega a 53.550. Já a fila por
exames reúne 25.087. Em muitos casos, a espera pode passar de um ano.
Depois da oftalmologia —
que tem a maior procura e atende pacientes com doenças como catarata e glaucoma
—, as especialidades com mais gente à espera de consulta são: urologia (6.832),
odontologia (3.795), cirurgia geral (para casos de suspeita de hérnia inguinal,
3.295) e ginecologia (para fazer laqueadura, 3.184). No caso dos exames, as
quatro maiores filas são para ecocardiografia transtorácica (6.528), endoscopia
digestiva (4.279), doppler venoso (3.633) e ultrassonografia transvaginal
(2.757).
SECRETÁRIO ELABORA PLANO
De acordo com a Secretaria
municipal de Saúde, o tempo médio de espera por uma consulta com um cirurgião
para operar uma hérnia, por exemplo, é de 123 dias. No caso da oftalmologia, há
pacientes aguardando há quase um ano.
O novo secretário
municipal de Saúde, Carlos Eduardo de Mattos, prepara um plano para tentar
reduzir as filas do Sisreg. Em seu primeiro dia à frente da prefeitura, o
prefeito Marcelo Crivella determinou a elaboração desse projeto no prazo de 30
dias. Segundo o secretário, entre as estratégias que pretende adotar estão o
gerenciamento do espaço e do tempo nas unidades municipais para atender melhor
a demanda por consultas e exames; a integração entre município, estado e União
(incluindo os hospitais universitários), criando finalmente uma central de
regulação única; e a convocação de prestadores de serviço que cobrem pela
tabela do SUS.
Também está previsto um
acordo com operadoras de planos de saúde que tenham dívidas de ISS com a
prefeitura (segundo Crivella, esse montante chega a R$ 500 milhões). A ideia é
que essas empresas atendam, em hospitais particulares, pacientes que estejam na
fila e descontem o valor dos seus débitos.
— É muito mais do que um
mutirão. Trata-se de um plano para ordenar a regulação de consultas, exames,
outros procedimentos e leitos no município. O mutirão poderia reduzir a fila de
espera por um momento, mas os cariocas querem um atendimento que seja bem
planejado, duradouro e eficiente. Não dá para esperar mais tempo pela
implantação de uma central única de regulação. Vou, inclusive, discutir o
assunto com o ministro da Saúde, Ricardo Barros. Essa fila virtual é perigosa e
perversa, porque ninguém a vê, mas todos sabem que ela existe por conta das reclamações
dos usuários da rede pública — disse Carlos Eduardo. Segundo o secretário, em
média, 10.594 pessoas procuram mensalmente o serviço de oftalmologia para ter
sua primeira consulta. Porém, o município só tem capacidade para atender 6.344
no mesmo período. Isso significa dizer que, todo mês, 4.250 pessoas não
conseguem ver um médico. Se o paciente finalmente é atendido e encaminhado para
uma cirurgia, sai do Sisreg, mas enfrenta outro problema: as filas de cada
unidade da rede municipal. Há hospitais, como o da Piedade, por exemplo, onde
240 pacientes aguardam uma operação de catarata e 48, de glaucoma. Existe fila
ainda para extração de cálculos renais, com 70 pacientes. No Hospital Municipal
Jesus, em Vila Isabel, especializado em doenças infantis, há uma demanda por
120 cirurgias pediátricas. A ideia do secretário é ampliar o horário de uso de
todos centros cirúrgicos da rede. Atualmente, eles têm procedimentos apenas nos
dias úteis, até as 15h. Passariam a funcionar até a noite e também nos fins de
semana. Esperando há oito meses por uma consulta, o aposentado Raimundo de
Assis não sabe se, quando for atendido, seu problema terá solução:
— Estou com a minha vida
limitada. Antes, eu era orador da minha igreja (ele é católico). Agora, dependo
da minha mulher até para buscar o dinheiro da minha aposentadoria no Centro.
O mesmo drama enfrentam
Maria Célia Magalhães, de 67 anos, e Fernando Filho, de 69. O casal, morador de
Vila Isabel, está com problemas de visão e aguarda a vez de fazer exames
oftalmológicos pelo Sisreg há quase um ano. No caso de Maria, cinco verrugas em
suas pálpebras aumentam ainda mais seu desconforto.
— Os médicos da clínica da
família estiveram na minha casa há três meses e disseram que, finalmente, eu
conseguiria fazer os exames e agendar a cirurgia. Mas isso aconteceu há três
meses! — reclamou a dona de casa.
“CHEGUEI A ME AJOELHAR”
Há três anos, o marido de
Maria sofreu um descolamento da retina no olho esquerdo. Em 2016, descobriu que
o direito está com catarata e necessita de uma cirurgia. Ele já tem dificuldade
para reconhecer parentes.
— O que me parece é que
estamos abandonados. Não recebemos informações claras. Estão empurrando o
problema com a barriga — lamentou. Moradora de Jacarepaguá, a dona de casa Juci
Medeiros, de 60 anos, espera desde março de 2016 pela marcação de uma
endoscopia. Desesperada, um dia foi a um posto de saúde em seu bairro em busca
de uma definição: — Cheguei a me ajoelhar, implorando pela marcação do exame,
mas não adiantou — disse ela. Os ministérios públicos federal e estadual vêm
acompanhando o problema desde o ano passado, se reunindo com representantes das
três esferas de governo. Segundo a coordenadora da área de saúde do MP do
estado, a promotora Denise Vidal, um sistema único de regulação, controlado por
secretarias municipal e estadual, seria a solução. Atualmente, segundo Denise,
cada ente da federação regula suas consultas e internações: — O resultado desse
sistema onde cada um cuida de seus hospitais nós já conhecemos. Na maioria dos
casos, quando o paciente que está na fila consegue ser atendido, o tratamento
acaba não tendo a eficácia necessária. Um doente de câncer, por exemplo, se
houver demora no atendimento, pode até ir a óbito.